Já tinha algum tempo que eu não era obrigada a agir desta maneira. Destaco: obrigada. Nesta vida, há coisas que se impõem, têm força própria. Escrever é uma delas. Não, não estou mudando de assunto, desculpe se lhe causo qualquer ansiedade por não ser direta como deveria. Sempre perco um pouco da objetividade e da clareza de raciocínio, após noites sem dormir. E, nesta hora, é justamente de clareza que preciso, já que morro de medo de não dizer as coisas do modo que deveria e acabar sendo mal compreendida. A verdade é que os sintomas voltaram a aparecer e, apesar de eu ter alguma intimidade com eles, fingi não perceber o que estava acontecendo. Mas, nesta última madrugada insone, o incômodo ficou evidente. E, apesar de não ter pronunciado uma palavra, fui obrigada a reconhecer: Não tem mais jeito. Chegou mesmo a hora de eu deixar o Vestígios da Senhorita B.
Acredito que as coisas existem e acontecem mesmo que não sejam verbalizadas, não é a linguagem que lhes confere existência, os criptotipos não clamam pelo seu reconhecimento, sobrevivem silenciosos sem qualquer luta, aceitam sua condição e o seu lugar. Mesmo sabendo disso, preciso deixar algo claro: se pareço nostálgica ou taciturna é por pura força do hábito, tenho um defeito de fábrica, nunca aprendi a escrever feliz, apesar de não acreditar num mundo sem redenção. E, sempre quando falo em morte, quero dizer renascimento, fui batizada de maneira muito apropriada, mesmo que este meu R. tenha sido uma escolha aleatória com o único objetivo de me fazer parte de um clã. Sim, já que falo de identidade, retomo o assunto: se pareço muito nostálgica ou taciturna é apenas na escrita, sou dada aos exageros e, na vida das noites e dias, ignoram que sou escritora e até acham muita graça dos meus exageros de aniversários, todos eles festivos e contentes, todos eles bem diferentes daqueles oriundos do meu defeito originário. E já que tenho que ser sincera sobre esta despedida, preciso contar algo muito especial que aconteceu comigo. Lembra que eu ficava tentando definir o que é felicidade? Então: numa noite qualquer, caiu um temporal aqui em São Paulo. E, na manhã seguinte, fui obrigada a acordar muito cedo para ir apresentar um trabalho. Devia ser umas sete horas e eu estava numa movimentada avenida quando, de repente, percebi, no meio de milhões de prédios modernos, uma pequena casinha de estilo colonial. Na varanda desta, uma senhora oriental enxugava o chão e sorria de maneira doce para os que passavam. Fiquei em transe com a cena e parei o carro para comungar com a atmosfera de total plenitude. Tá, tudo bem: é mentira, eu não parei o carro, estava muito atrasada e precisava apresentar o tal trabalho. Só que, desde este dia, não parei de pensar no episódio e acabei aceitando que, apesar de não ter como capturar o sentido da palavra felicidade, ela é algo muito parecido com enxugar o chão da minha varanda, após uma noite de tempestade.
Não, não encare meu ato como um abandono ou uma fuga, não quero ver nenhum pesar nos seus olhos, fique mesmo de costas, qualquer despedida é difícil. Receba todo o meu amor e guarde esta fotografia como a primeira lembrança da minha viagem em busca daquilo que já lhe é conhecido. Muito obrigada por tudo, mesmo. Não levo comigo qualquer mala ou dor. Tenho apenas uma pequena mochila e, no bolso, um breve bilhete seu com o mais importante dos avisos: Seja feliz. Sejam felizes. Não, não há sonho que morra sem deixar vestígios.