19 de jun. de 2009

Para os meus amigos perdidos

No prédio onde cresci, não existiam crianças. Portanto, fui acostumada a pular elástico sozinha, utilizava as cadeiras como apoios e fantasiava amigos impossíveis. Sempre mendigando o olhar do outro, puxava assunto com os adultos e era querida pela maioria deles. Alguns me presenteavam com gibis e chocolates. Nos feriados, me telefonavam para que eu fosse brincar com seus netos. Menina alegre e bem criada, ninguém temia que eu fosse uma má companhia. Aquele era um prédio de velhos. Talvez isso explique o enorme afeto que sinto por pessoas de idade avançada.
Meu apartamento era enorme e eu morria de medo de um anjo que vivia na parede. Julgador de todos os meus atos, ele possuía enormes olhos verdes e era mau. Nas madrugadas, eu tinha certeza de que ele fugia do quadro e caminhava pela sala. Muitas foram as noites em que fui dormir com sede, jamais tive coragem de pegar, na cozinha, um copo de água.
Sendo aquele prédio um lugar de idosos, fui acostumada, desde cedo, com a perda dos meus amigos. Um deles subiu no elevador comigo e, minutos depois, faleceu por causa de um infarto. Lembro do meu pensamento, quando recebi a notícia: o certo é infarte ou infarto? As pessoas me perguntavam: ele parecia pálido, cansado? Eu nada respondia, abalada com a descoberta de que a morte não nos deixa antes um recado.
Um dos meus preferidos, Sr. José Augusto, apareceu carequinha de uma hora para outra. Era um homem amável, sempre conversava comigo. Meses depois, faleceu. Eu devia ter uns nove anos e pedi para ir no seu enterro. Afinal, ele era um dos vizinhos mais queridos.
Do Seu Roberto, do quinto andar, eu não gostava muito não. Cheirava mal, fazia brincadeiras sem sentido. No dia em que morreu, alguém comentou que sua sobrinha tocou piano a noite toda como se nada tivesse acontecido.
Muito tempo se passou. Meus pais compraram um outro apartamento e tive que trocar de endereço. Na véspera da mudança, eu estava arrasada. Chorava de maneira inconsolável. Como poderia abandonar o cenário da maioria das minhas lembranças? Quem seria amedrontado pelo anjo da parede? Meses depois, já na casa nova, acordei aliviada e percebi que o tempo se encarregou de trazer para minha vida novos atores, não mais me incomodava com nada disso. Naquele prédio, ficou para sempre enterrada a menina que fui. Bem como os seus primeiros amigos.

Texto em memória de Seu José Augusto, meu vizinho jamais esquecido.

9 comentários:

Emmanuel Mirdad disse...

Belo texto!
Pra evitar o infarto que o stress diário me programa.

Bernardo Guimarães disse...

lindo texto sobre lindas lembranças. e só não deixar de ser intrometido, os termos est~so certos se escritos assim:
enfarte ou infarto.
bj.

Anônimo disse...

Renata, com este seu coração lindo, você é toda linda.
Eu adoro velhos. Já sendo uma (61, já pago meia)nutro amizades com os setentetinha, oitentinha... tendo mesmo uma amiga de 101 e um amigo de 102.

Anônimo disse...

Coisa bonita essa sua homenagem ao Sr. José Augusto, ao mesmo tempo em que nos revela um pouco mais de sua sensibilidade e graça. Confesso que tive uma reação meio heterodoxa (e soturna) ao seu texto. Fiquei aqui a pensar se minhas atitudes e posturas perante a vida são de alguém capaz de motivar uma criança de 9 anos a ir ao meu enterro ou cuja filha tocará piano como se nada tivesse acontecido.

Janaina Amado disse...

Texto lindo, comovente, sensível. Renata, recebi o livro hoje, muuuuuito obrigada. Achei a edição linda. Vou ler com calma, viu? Beijo!

Janaina Amado disse...

Renata, enviei há pouco um comentário, pra agradecer a chegada do seu livro, não sei se o recebeu. Obrigada!

Senhorita B. disse...

Que bom que já chegou, Jana!
Bjs:)

Edu O. disse...

Voltei de minha cidade vendo a casa de meu avô, onde passei a infância, completamente diferente e isso pareceu-me como se tivessem apagado minha infância, borrado a história. Não consigo pensar em mim sem aquele lugar exatamente como era.

Teu texto me tocou profundamente. e por favor, volte antes de uma semana.

Muadiê Maria disse...

Lindo texto ,Renata. Também sempre gostei de velhos, minha mãe sempre comentava que eu crianaça já gostava.
Esse seu texto me lembrou um livro de Lígia Bojunga, uma escritora maravilhosa, sobre a amizade entre uma criança e um homem no prédio que mora, e este homem se suicida. Se chama Meu amigo pintor, se não me engano.
um beijo