14 de jun. de 2009

Dos pequenos vícios




Seu nome já dizia tudo: Madalena. Tinha cabelos ressecados e negros, batom vermelho borrado, algum dente sempre manchado. Havia algo de muito bonito nela, era dona de uma tristeza encantadora, dessas que poucos conseguem perceber. Talvez aquela menina fosse a única da sua classe que notava isso. Muitos anos depois, compreenderia: se sentia muito próxima daquela mulher. De alguma forma, acreditava que ela tinha descoberto seu maior segredo, mas o havia guardado por uma questão de princípios. Sim, Madalena sabia, só que fingia ignorar: a menina comungava do seu amor pelos livros.


- Alguém sabe dizer o motivo da perplexidade de Ana ao se deparar com um cego mascando chiclete?


(Silêncio)


- Alguém pode me dizer qual personagem de Capitães de Areia virou uma estrela no céu?


(Silêncio)


- Alguém se arrisca em dar um palpite sobre a veracidade da afirmação de que Bentinho foi traído por Capitu?


(Silêncio)


Foram meses de um monólogo melancólico, conformado por não ser diálogo. E Madalena era de uma bondade dolorosa, não alterava seu tom de voz, permanecia esperançosa, esperava a mudança de comportamento dos alunos. Como Ana, não se permitia maiores liberdades, por isso a cena do cego mascando chiclete também lhe causava tanta estranheza. Como Dora, se contentava em contar histórias para aqueles meninos perdidos, tão ignorantes de sua própria condição. Jamais agiu de maneira autoritária, nunca julgou Capitu, sustentava um feminismo suave, seu batom testemunhava isso. Talvez Bentinho estivesse mesmo movido por um desses ciúmes doentios.
A menina sabia quase todas as respostas, mas nunca se manifestou. Preferia contemplar Madalena, analisar suas reações. Tinha medo que seus colegas achassem que ela era uma dessas "sabe-tudo" e que ficassem incomodados. Tinha medo de não ser considerada "um deles" e de não conseguir aceitação. Naquele tempo, ela até errava algumas coisas de propósito para poder pertencer, para não se destacar. Ela não sabe o porquê, mas ainda hoje, de vez em quando, age assim.

10 comentários:

Bárbara disse...

Renata,maravilhoso texto para uma tarde de domingo.Lindo e emocionante como esses olhos da Charlotte.
"Naquele tempo, ela até errava algumas coisas de propósito para poder pertencer, para não se destacar." Talvez seja, também, uma maneira de pensar no outro.
Beijos e vou alí revisitar o conto 'Amor'.

Anônimo disse...

Teu talento para o conto é absolutamente imenso. Parabéns (mais uma vez).

Vivz disse...

Tem uma comunidade no orkut: "Finjo ser burro só pra me enturmar com o pessoal". Hahahahah. Essa menina não está só e precisa entrar no orkut já!

Adorei as lembranças dos livros. Chorei tanto em Capitães, tanto! Mas nunca aceitei muito essa idéia dos olhos ciumentos de Bentinho. Acho que Capitu traiu, sim. Não por amor ou desamor. Só curiosidade mesmo.

Avisa qdo estiver no Skype, pq nunca entro lá. Beijocas!

Janaina Amado disse...

Ih, Renata, tantas vezes agi como a Madalena!

Andréia M. G. disse...

Renata, seus textos sempre conseguem me tocar no fundo da alma. Eu tb já passei por eeses silêncios mesmo sabendo as respostas... Ainda hoje é assim em muitos momentos... Prefiro calar, como a menina da sua história.

Beijinhos!

Victor Mascarenhas disse...

Os últimos posts estão mais literários e um tanto memorialistas ou é impressão minha? Seria efeito da leitura de Irmãos Karamazov?

Anônimo disse...

Tem um selinho pra você no Compartilhando Leituras...

BJS

Bernardo Guimarães disse...

renata:
mais um texto para aliviar minha segunda feira.
bj.

Muadiê Maria disse...

Renata,
tenho uma Madalena em mimnha vida. Não lembro se usava batom, mas lembro dos lábios carnudos e da generosidade em nos ensinar Lingua Portuguesa.Tinha muita dignidade, o que permitiu que fosse uma linda mãe solteira nos idos 70.
beijo

Edu O. disse...

que bom voltar aqui. as vezes erramos mesmo para acertar