Vocês se lembram daquela frase que aprendemos aos doze anos e que ficávamos repetindo no playground sem parar? Aquela que proclama: "o que vem de baixo não me atinge". Pois então: eu a internalizei com perfeição. Talvez pelos dez anos de análise. Talvez porque, na infância, como vocês perceberão, eu acreditava piamente em tudo que me era dito.
Recentemente, minha querida amiga
Aeronauta, me pediu que eu escrevesse sobre quando eu era criança. Pois bem, acabei me lembrando que eu era uma menina muito medrosa. E me recordei de dois episódios que foram verdadeiras exceções ao "o que vem de baixo não me atinge."
O primeiro deles se deu num conhecido restaurante de Salvador. Eu, aos quatro anos, tinha verdadeiro pavor da criatura que abria a porta dele. Isso mesmo: o monstro da minha infância era o anão do Baby Beef.
Ele era(é?) um homenzinho muito, muito pequenininho. E, bem mais terrível do que ter que ver aquele anão todo domingo, era a pressão que os adultos faziam para que eu fosse brincar com ele. Sempre petrificada de horror, sentava na cadeira de couro e observava as outras crianças correndo felizes, pertubando a vida daquele pobre ser. E, certo dia, uma delas, descobrindo meu desespero, afirmou: o anão lhe lançou uma maldição. Você ficará como ele, jamais crescerá.
Pronto. Isso foi o bastante para que eu começasse a chorar compulsivamente. Era louca para ser adulta e, agora, descobria que aquela criatura miserável iria impedir isso de acontecer! Foram longas as noites de medo e muitos pedidos para Deus. Até hoje, evito almoçar naquele lugar.
Mas é o segundo episódio que mais quero contar. Aos seis anos, gostava muito de ficar na casa da minha avó. E, certo dia, entro na sala de jantar e vejo minha mãe, minha avó e minhas três tias, arrasadas, repetindo sem parar: Ohhhh, J, filho de M? Drogado? Que coisa terrível!
O clima era realmente bastante fúnebre. Uma das minhas tias tinha lágrimas ns olhos. Compreendi que ser drogado era algo muito ruim, quase como ser um vampiro. Mas não sabia exatamente o que tal palavra significava. Lembro-me ainda com perfeição de minha mãe falando: Mas que desgraça se abateu sobre essa família! Renata, minha filha, não aceite nada que J. queira lhe dar.
J, filho de M, era um bonito adolescente que morava no prédio de minha avó. Com alguma frequência, brincava comigo, adorava crianças. Recordo-me do calafrio que senti ao pensar nisso. Que perigo! Nunca, nunca mais deixaria J se aproximar.
Pois então. Alguns meses se passaram. E, numa tarde, desci para o play do prédio de minha avó para esperar meu pai me buscar. Minha avó desceria em alguns instantes, iria para um chá de cozinha, estava toda arrumada, vestia meia-calça e usava um sapato alto para mascarar sua baixa estatura.
Eu aguardava, alegremente, a chegada de meu pai. Brincava com minha boneca favorita. Mas eis que, de repente, escuto uma voz chamar meu nome. Olho para trás. Congelo. J, filho de M, está vindo na minha direção.
Horrorizada, tenho pouco tempo para pensar. Vejo minha avó saindo do elevador. Não tenho outra alternativa. Corro em alta velocidade, pulo em cima dela. Segundos depois, caímos juntas no chão.
Minha avó, com a meia calça rasgada, muito irritada. J., ajudando-a a se levantar, rindo sem entender nada. Minha avó desistindo de ir ao chá de cozinha. Meu pai, aborrecido: essa menina está mesmo muito mal-educada! Eu, de castigo, sem compreender o motivo disso. Minha avó, agradecendo: obrigada, J. Você é um bom menino.
O que vem de baixo não me atinge? Sei mais não. Escrevendo esse texto, voltei a ficar com raiva de J., do anão, mas, principalmente, de minha avó e meus pais.