Natan Barretto é ator e poeta. Amanhã, 18 de setembro, ele estará lançando na Saraiva do Shopping Salvador o seu segundo livro de poemas, Esconderijos em Papéis. Fiquei intrigada com a sua rica história de vida e lhe fiz algumas perguntas. Eis o resultado:
RB- Cecília Meireles, certa vez, disse: não tem mais lar o que mora em tudo. Depois de tanto tempo fora do país, o Brasil ainda é sua "casa"? Onde você, agora, é realmente estrangeiro?
NB- No poema “Navio de várias árvores”, eu toco nesse assunto, do ponto de vista lingüístico, naturalmente abrangendo questões relacionadas à pátria. O poema começa com os versos: “Já sei que jamais serei um perfeito poliglota./ Tampouco poderei tentar a viagem de volta.” No primeiro verso, torno pública a minha incapacidade de falar perfeitamente os quatro idiomas que não apenas estudei a fundo, mas também vivenciei nos últimos vinte anos. No segundo, revelo a impossibilidade do retorno imaculado à língua-mãe. Embora durante os anos dedicados ao estudo de inglês, francês, italiano e espanhol, eu tenha continuado a estudar português, através da leitura e da escrita, ter deixado o Brasil me distanciou da minha língua materna. Hoje falo e escrevo português com um cuidado e atenção semelhantes aos que dedico a idiomas estrangeiros, tentando desviar-me de suas tantas armadilhas. Ainda assim, de vez em quando, acabo cometendo erros elementares, como se eu fosse estrangeiro à minha língua-mãe. Nesse mesmo poema, digo: “Minha língua-mãe me lambe,/ mas já não me lava/ da lava de palavras que me levam...”
Não sei se concordo totalmente com Cecília Meireles, pois acho que todo mundo tem um lar sim, ainda que imaginário. Foram muitas as casas onde morei, desde que deixei a casa onde vivi até os 19 anos. Morei numa pensão no Rio, num quartinho em Paris, num albergue em Roma, no sótão de um casarão em Londres, isso só para citar alguns dos tantos lugares por onde passei. No entanto, sempre soube que estava de passagem. A velha casa de Periperi, construída há mais de 70 anos por meu avô, a casa de sete mangueiras plantadas por ele e muitas outras árvores plantadas por meu pai, além de um lindo pé de flamboyant plantado por mim. Essa casa nunca deixou de ser, em mim, minha casa, ainda que nos últimos vinte anos eu só tenha estado nela de férias. Num poema, cujo título é o endereço dessa casa, digo que “partir é penetrar mais fundo do que quem fica.” O grande escritor argentino, Jorge Luis Borges, embora morasse na Europa, nunca deixou de ver Buenos Aires como a sua verdadeira cidade. Para ele, a pátria era um lugar muito mais idealizado do que concreto, muito mais no passado do que no presente. São dele os versos: “Naquela Buenos Aires, que me deixou, eu seria um estranho./ Sei que os únicos paraísos não proibidos ao homem são os paraísos perdidos.” Nesse sentindo, acredito nunca ter deixado o Brasil. Ainda assim, não poderia negar que em alguns aspectos me sinto estrangeiro aqui. No fundo hoje me sinto e sou estrangeiro, além de ser cidadão, tanto aqui quanto na Europa, o que por um lado não deixa de ser uma perda. Mas olhando por um outro ângulo, acaba sendo um grande ganho.
RB- O que dói mais: ser ator ou poeta? (Faço tal pergunta porque apenas escrevo prosa. E sou uma atriz frustrada, jamais subi num palco, apesar de apaixonada pela atividade).
NB- Como fui muito prolixo na resposta acima, vou tentar ser mais sucinto aqui. Na minha experiência pessoal, ser ator é muito mais doloroso. Nina, uma atriz de pouco talento, personagem da peça A Gaivota, de Tchekhov, expressa essa dor em poucas palavras: “Você não pode compreender o que é isso, ter consciência de que atua mal.” Eu acho até que eu tinha talento e vocação. Mas fui tomado por um grande medo do palco. A insegurança que eu sentia em cena foi o que me levou a buscar o esconderijo do ato de escrever. Não nego a dor de estar muitas vezes diante da branca folha de papel, consciente de que escrevo mal, não conseguindo sair vitorioso da luta que diariamente realizo com as palavras. No entanto, o fato de eu não estar exposto enquanto luto me garante uma certa lucidez e calma, qualidades necessárias para a luta, que no dizer de Drummond, era a luta mais vã. Já o ator não. Para a luta do ator ocorrer, ele precisa estar diante do público.
RB- Em qual dos seus poemas você se esconde melhor?
NB- A idéia dos meus poemas como esconderijos está mais relacionada à minha ausência física neles do que ao ato de se esconder. Na verdade, cada vez mais acredito que não seja possível se esconder enquanto artista, nem mesmo enquanto pessoa. A individualidade inerente a todo ser humano impede que isso ocorra. Por sermos diferentes uns dos outros, acabamos sempre deixando a nossa marca individual em tudo o que fazemos. Nos meus esconderijos em papéis estou mais exposto do que escondido. E aceito isso. Porém estou ausente. Estar fisicamente ausente é fundamental. Escondido mesmo eu não estou nem mesmo nos poemas em que não estou, pois até a minha percepção individual do mundo me revela ao mundo.
RB- Quando você se compreendeu artista? Foi difícil a aceitação de tal condição?
NB- Eu me compreendi artista muito cedo. Quando criança, eu pensava em ser médico ou pintor. Eu tinha um cavalete e fazia muitos quadros que minha mãe pendurava na sala e no corredor de nossa casa. Eu gostava muito de fazer peças com fantoches. Na verdade eu adorava isso! Minha mãe nos levava muito ao Teatro Castro Alves. Foi lá que eu vi Monetinho e me encantei. Anos mais tarde veria Os Saltimbancos e passaria a não ter dúvidas do que eu queria fazer pelo resto de minha vida. Mas só comecei a subir no palco quando tinha uns 14 anos. Foi no Marista, colégio onde eu estudava. Eu representei Zé do Burro, em O Pagador de Promessas, de Dias Gomes, na sala de aula. O texto era longo, mas eu não errei nada. Ao me assistir, Luciano Bahia, que era meu colega de turma, me chamou para ser o ator principal da peça do ginásio, no ano seguinte. Nós competiríamos com o 1º, 2º e 3º colegial. A partir dali, eu ganharia todos os prêmios de melhor ator, até deixar o Marista em 1986. Minha família sempre ajudava, procurando roupas, sapatos e perucas para os meus muitos personagens. Todos me incentivavam. Nunca me impuseram nenhum empecilho. Mas o medo do palco sempre esteve presente, desde o princípio. No entanto, esse medo se diluía quando eu estava no palco. Era maravilhoso! Se eu pudesse redescobrir aquela energia em mim, retornaria ao palco hoje mesmo. E já não descarto essa possibilidade. Ando namorando o palco novamente. Em Londres, faço parte da StoneCrabs, uma companhia teatral anglo-brasileira. Embora a minha função esteja apenas relacionada a assuntos administrativos, já não acho impossível algum passeio futuro por minha primeira profissão. Seria tão bom poder explorar aqueles esconderijos novamente!
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5 comentários:
ohh.. maldita greve.. mas eu espero..
si, yo tambien amooo aquele livro.. preciso ler novamente..
muito boa entrevista.
beijaoo
valeu, senhorita...! beijo.
Renata, que entrevista fantástica foi essa!?
Lí as respostas duas vezes,cada, de tão boas,sensíveis e lúcidas!
Adorei conhecer esse andante literário com você.
Á respeito da sua pergunta "O que dói mais, ser ator ou poeta",lembrei de uma frase de Mário de Andrade que,meu professor de filosofia da época do colégio, me disse,recentemente,num maravilhoso e inesperado reencontro que tivemos:
"O artista é um fatalizado.
Não é uma opção.
É uma condição."
Beijos artista.
É eu vou dizer o que dona moça? Só curtir a entrevista, muito lúcida e reveladora, a mãe dele teve um papel fundamental nessa história ao leva-lo sempre ao Teatro Castro Alves, além, de ter estudado num dos melhores colégios particulares da época os Maristas, agora, duro mesmo é nascer e viver na maré sobre as pontes e tendo como visão única o lixo de toda Salvador e estudar em colégios estadual, se bem, que à época era melhor que particular, com pais semi-analfabetos e entrar na Politécnica... Com isso não estou tirando o mérito do Natan, apenas, faço um paralelo...
bjs
O Sibarita
Nada Além..
Nada sei além desta janela
aberta diante do meu olhar.
É a maré, é a maré!
Lixos e ratos
estampados no horizonte
de urubus circundando
pelo céu sob a réstia
do sol alumiando meus olhos
perdidos no escarcéu.
Olhando da janela
a visão é ciclope
e me remete
à infância na maré.
As rajadas no azul cinza
de moribundos dias
não esquecidos.
Quebrantava-se o dia...
Era a vida!
Miríade de sonhos
na misantropia
dourando barrigas de lombrigas
sucumbindo pela anemia...
Nada além...
A fome e o lixo!
Das flores,
apenas, o resquício.
O Sibarita
(Esse é o comentário certo Renata)
O Sibarita,
Não poderia deixar de falar do seu lindo e sincero comentário.
Talvez seja mais duro mesmo (e acredito que o seja) mas,confesso que meus olhos sempre brilharam mais diante de histórias como a sua. E não por compaixão ou culpa, mas por acreditá-las mais viscerais que as minhas. Por muito tempo,me martirizei por não me sentir feliz na posição privilegiada em que me encontrava (e encontro)"mas ela tem tudo!", com o tempo fui descobrindo que apenas meu mundo não me bastava...
Talvez seja só inveja mesmo, ou herança de cristandade atávica, mas a verdade é que, é esse tipo de história, que me faz colocar um pé a frente do outro, cada dia, e tocar em frente, com toda a sensação de desconforto que sinto nesse mundo estreito. Porque,como diria Clarice, "Viver é apertado", mas quero acreditar que ainda vale muito a pena. Como acreditei quando li seu comentário.
Um beijo!
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